LINDB, uma estratégia de enfrentamento do New Coke Tupiniquim
LINDB, uma estratégia de enfrentamento do New Coke Tupiniquim
Vládia Pompeu Silva quarta-feira, 8 de junho de 2022
Atualizado em 7 de junho de 2022 15:13
Nos últimos anos, não raro nos depararmos com críticas, algumas bastantes duras, enaltecendo uma suposta deficiência de legitimidade de decisões exaradas por entidades integrantes da Administração Pública das mais diversas esferas. Estaria o Poder Público alcançando espaços que não lhe teriam sido deferidos constitucional e legalmente, concretizando em decisões “irresponsáveis”, protegido pelo jugo da discricionariedade administrativa e atuando “perigosamente” diante de seu alcance e poder incontrolável.
Para alguns, o princípio da legalidade não conseguiu construir o limite adequado a atuação do que chamam de Estado Administrativo. A Lei falhou em definir parâmetros claros e rígidos de atuação. Agora, nos resta apenas buscar soluções mais eficientes para “colocar as amarras no monstro inconstitucional”, sob pena de desconstrução do princípio da separação do poderes e falência do Estado de Direito.
A narrativa parece exagerada, mas não é… Infelizmente.
De fato, a natureza própria do Direito Administrativo, que permite que as instituições que o concretizem atuem numa “zona cinzenta”, ora decidindo em concreto, ora regulamentando em abstrato, exige que proposições relacionadas levem em consideração tal particularidade. Lembremo-nos, ainda que a estes mesmos órgãos incumbe colocar em marcha as políticas públicas necessárias à ordem social.
Logo, parece claro que a instituição de limites rígidos ao seu atuar não parece fazer muito sentido. A legalidade, por si, em que pese ser essencial, não trará a resposta final à questão. De outra sorte, espera-se que a autocontenção de gestores e administradores públicos possam se traduzir em ações mais íntegras e alinhadas com os limites (muito genéricos) impostos pela separação dos Poderes. Aqui, a doutrina busca reforço na moralidade como forma de deixar claro um limite digno à prerrogativa conhecida como “discricionariedade administrativa”.
Sabemos que a Constituição da República Federativa do Brasil consagrou expressamente à condição de princípio norteador das ações da Administração Público a moralidade sem, entrando, esclarecer o seu conteúdo. Mas a moral, antes mesmo da aludida previsão, já não seria elemento ínsito ao Direito?
Lon Fuller, professor de Harvard, em sua obra The morality of law, nos apresenta um conceito de moralidade para além do que rotineiramente conhecemos. Subjuga-o a uma perspectiva que intitula de procedimental e interna, segundo a qual exigiria por parte do Poder Público alinhamento estrito aos princípios da generalidade, publicidade, irretroatividade, inteligibilidade, consistência, praticabilidade, estabilidade e congruência. Todos, ao nosso ver, plenamente aplicáveis ao atuar em concreto ou em abstrato.
Nessa perspectiva, a moralidade é interna ao Direito. Este, por sua vez, só cumprirá sua função de busca pela ordem social, através a definição de regras gerais de modelagem comportamental, se obedecidos princípios que lhe dão sustentação (1946, p.33). Não há, portanto, como separarmos direito e moral e o desafio está em garantir que ações administrativas sejam alinhadas aos princípios citados, ainda quando a legalidade não nos alcança, na zona cinzenta.
Assim, a moralidade interna (FULLER, 1969, p. 4-6 e 42) é inerente às regras postas, mas vai além: impõe normatividade mesmo quando não há regra. E é aqui que reconhecemos uma defesa coerente à legitimidade do Estado Administrativo. “Algo a ser celebrado”, segundo Cass R. Sustein e Adran Vermeule (2021, p. 178).
Este ente que, como dito, é responsável por realizar julgamento sobre o bem comum, protegendo a liberdade e o bem-estar geral e atuando em contraponto com o mercado (2021, p. 21). Nesse desafio, a existência de regras claras se faz necessária, quase tão importante quanto o espaço decisório discricionário.
Nesse sentido, Cass R. Sustein e Adran Vermeule (2021, p. 27-28):
… o objetivo principal e legitimo do Direito Administrativo é estabelecer um regime comum para regular, civilizar sem eliminar as divergências em curso sobre o escopo, objetivos e poderes do Estado Administrativo, enquanto também promove valores que devem contemplar pessoas com diversos compromissos fundamentais.
Então, como afinal podemos legitimar o Estado sem constranger sua atuação discricionária?
A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB, em especial após a alteração promovida pela lei 13655, de 25 de abril de 2018, que incluiu no decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público, parece ter sido uma estratégia para mitigar a questão aqui discutida.
Vislumbrando uma busca por aprimoramento da moralidade do Direito Administrativo, a LINDB tenta aproximar a objetividade legal e a construção/fortalecimento embasado numa cultura institucional de moralidade procedimental.
Identificamos em diversos dispositivos da LINDB uma possível concretização ou, pelo menos, uma intenção de aplicação direcionada de princípios como a generalidade, publicidade, irretroatividade, inteligibilidade, consistência, praticabilidade, estabilidade e congruência. A LINDB seria, ao nosso ver, instrumento de modulação comportamental no sentido de fortalecer a moralidade interna que, apesar de inerente ao Direito, pode estar adormecida na cultura administrativa brasileira.
Em nossa percepção, Direito e moralidade se entrelaçam quando o assunto é a garantia de confiança institucional e fortalecimento da legitimidade das decisões administrativas, sejam dosadas e efetivadas em caso concreto.
Processualmente falando, Lon Fuller (1946, p.38-39) apresenta algumas condições para se cumprir as tarefas do Direito na constituição de verdadeiro sistema jurídico, entendido aquele que detém a moralidade inerente. São elas: a) estabelecer regras; b) as regras devem ser transparentes (as partes envolvidas devem ser informadas a seu respeito); c) as regras devem ser prospectivas (as pessoas devem confiar nas normas em vigor e não estar em constante sobressaltos com mudanças inesperadas); d) as regras devem ser compreensíveis; e) as regras não podem exigir que as pessoas façam o que não podem fazer; f) não devem gerar incompatibilidades entre seu preceito e sua aplicação.
Cass R. Sustein e Adran Vermeule (2021, p. 62), quando desatendido cada um desses aspectos nos deparamos com uma violação da moralidade mínima do dever. Destaca-se que, alguns desses aspectos identificados à luz da realidade presente no Estado Administrativo norte americano, estão expressamente previstos na LINDB, solução tupiniquim para mitigar ou até mesmo evitar o fortalecimento de um New Coke à brasileira.
Afinal, essa visão negativa sobre o atuar da Administração Pública, além da sensação de incômodo e falência social, abre espaço para uma expansão disfuncional do Poder Público e a desvalorização da discricionariedade técnica. Aspectos que impedem o fortalecimento de um real Estado de Direito. Todos perdemos.
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FULLER, Lon L. The Morality of Law. Revised edition, New Haven:Yael Universitu Press, 1969.
SUNSTEIN, Cass R e VERMEULE, Adrian. Lei e leviatã, resgatando o Estado Administrativo. Trad. Nathália Penha e Cardoso de França. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-administrativo/367582/lindb-uma-estrategia-de-enfrentamento-do-new-coke-tupiniquim